Precisamos falar sobre Trote
“Disfarçados” de diversão, os trotes ocultam uma face violenta do ingresso na Universidade
Em 1831, revoltado com o tipo de recepção que os calouros recebiam na então Faculdade de Direito de Recife, Francisco Cunha e Meneses – calouro nesse ano – tentou deixar o local onde eram realizadas as “brincadeiras”. Foi interceptado por um dos veteranos e morto a facadas, no que é considerado o primeiro caso registrado no país. De lá para cá, passaram-se 184 anos e, desde então, se avolumam o número de registros desse tipo de prática a cada início de semestre nas Instituições de Ensino Superior brasileiras.
A prática de raspagem dos cabelos, que se estabeleceu ao longo dos tempos como sinal distintivo daqueles que ingressam no ensino superior, tem origem francesa e o seu objetivo era evitar a propagação de doenças: o que justificava também a queima das roupas dos ingressantes das Instituições.
No livro “A violência no escárnio do trote tradicional”, de Paulo Denisar Braga, o autor atesta que no início os trotes estavam relacionados diretamente aos estudantes que vinham do meio rural e as práticas se constituíam como uma espécie de batismo de entrada nesse novo mundo urbano. Elas consistiam em uma ruptura com o que representava seus locais de origem.
A aprovação no vestibular e a matrícula feita são o início de uma nova etapa no mundo acadêmico e deveriam ser momentos oportunos para estabelecer relações com os estudantes veteranos e entender a estrutura do ensino superior. Mas o que acontece é, em muitos casos, um pesadelo recheado de agressões físicas, verbais e psicológicas contra os novos membros da comunidade acadêmica.
Caso emblemático sobre a falta de limites e de relações de poder deturpadas foi o do calouro de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Edison Tsung Chi Hsueh, que em 1999 foi encontrado morto no fundo da piscina Instituição, após uma recepção de calouros. Forçado a entrar na água, mesmo não sabendo nadar, acabou por falecer e só teve o corpo encontrado na manhã seguinte, no que foi um dos mais chocantes casos recentes de trotes no Brasil.
O fato é que o trote foi naturalizado e se estabeleceu como “ritual de passagem”. Para Eduardo Oliveira, coordenador de assuntos estudantis da Universidade Estadual de Goiás (UEG), é preciso um pouco de cuidado com esse olhar condescendente sobre o trote. “Não se pode simplesmente encarar essa questão como mero marco de uma nova etapa, principalmente quando há violência envolvida”, observa.
Essas situações de violência não podem ser entendidas e justificadas como rito de passagem, sendo necessária uma discussão séria a respeito da questão. É o que também aponta Rezende Bruno Avelar, coordenador de Direitos Humanos e Diversidade da Pró-Reitoria de Graduação (PrG) da UEG.
Ele observa que a prática ganha ares de desforra, ou seja, de vingança. Os alunos veteranos que experimentaram situações adversas, irônicas ou vexatórias, à ocasião de suas entradas na Universidade, escolhem, por sua vez, vingar nos calouros o processo sofrido em seus tempos primeiros na Academia.
“Isso não deixa de ser uma forma de se exercer um poder, ainda que micro, mas que é muito revelador. Há um estranho e falso prazer em rir de quem se considera sujo, feio e passível de humilhação”, assinala.
A Eduardo e Rezende, faz coro o coordenador pedagógico do câmpus Henrique Santillo, em Anápolis, professor Flávio Alves Barbosa. Ele entende que as Instituições de Ensino Superior precisam estabelecer normas que impeçam a realização desse tipo de evento. Entretanto, os três fazem a ressalva de que essa parte legal é apenas um dos aspectos envolvidos nessa questão.
“É preciso trabalhar de forma ampla. Veja bem: só normas não resolvem a questão da violência, pois esta não se encerra apenas com punições. Isso quer dizer que os estudantes não devem cometer violência por medo de serem punidos, mas por entenderem que o respeito pelo outro é necessário”, pondera Eduardo.
Nesse sentido, o coordenador de assuntos estudantis da UEG enxerga como um avanço a reformulação das matrizes curriculares dos cursos da Instituição. De acordo com a nova proposta curricular, há um foco no indivíduo que estimula, além de aspectos próprios de suas formações, o empoderamento individual e a perspectiva cidadã.
Casos ganham visibilidade nas redes sociais
Para o professor Flávio é precipitado, entretanto, assumir um possível aumento nos casos de trotes violentos nos últimos tempos. Para ele, o que mudou foi a dimensão que os casos tomam com o aumento das tecnologias de foto e vídeo.
“Veja bem, antes essas ações ficavam restritas aos locais em que ocorriam. Hoje, com um celular essas imagens ganham o mundo”, observa. Ele, entretanto, pondera que a forma como essas imagens são utilizadas perfazem uma relação paradoxal. Pois, ao mesmo tempo em que denunciam, são também utilizadas para escárnio e perpetuação da violência.
Nas redes sociais são inúmeros os exemplos de mobilização em torno da questão. É o caso da página “Chega de trote ofensivo”, no Facebook. Nela os participantes relatam casos de violências ocorridos em suas cidades ou instituições de ensino superior.
Segundo a descrição da página, os participantes são “contra os abusos cometidos nos trotes das universidades”, apoiando “os estudantes calouros para que eles não tenham seus direitos violados”. A página também estimula a promoção de ações solidárias ao invés de atitudes violentas (sobre como participar dessas campanhas de solidariedade na UEG veja as matérias http://www.ueg.br/noticia/19772 e http://www.ueg.br/noticia/19863).
Espaços similares proliferam em todas as redes sociais. Além desses espaços próprios para a discussão do tema, usuários em geral costumam postar denúncias de casos que lhes chegam. Isso inclui, além da violência física, casos que envolvam violência simbólica.
Para Rezende Bruno, é possível perceber essas manifestações como a reverberação no espaço acadêmico de uma problemática social maior. “A violência que se vê e se experimenta no dia a dia muitas vezes acontece também na universidade. Dentro da sala aula, nos espaços comuns e coletivos dos câmpus”, diz.
“Disfarçados” de diversão, os trotes ocultam uma face violenta do ingresso na Universidade
Em 1831, revoltado com o tipo de recepção que os calouros recebiam na então Faculdade de Direito de Recife, Francisco Cunha e Meneses – calouro nesse ano – tentou deixar o local onde eram realizadas as “brincadeiras”. Foi interceptado por um dos veteranos e morto a facadas, no que é considerado o primeiro caso registrado no país. De lá para cá, passaram-se 184 anos e, desde então, se avolumam o número de registros desse tipo de prática a cada início de semestre nas Instituições de Ensino Superior brasileiras.
A prática de raspagem dos cabelos, que se estabeleceu ao longo dos tempos como sinal distintivo daqueles que ingressam no ensino superior, tem origem francesa e o seu objetivo era evitar a propagação de doenças: o que justificava também a queima das roupas dos ingressantes das Instituições.
No livro “A violência no escárnio do trote tradicional”, de Paulo Denisar Braga, o autor atesta que no início os trotes estavam relacionados diretamente aos estudantes que vinham do meio rural e as práticas se constituíam como uma espécie de batismo de entrada nesse novo mundo urbano. Elas consistiam em uma ruptura com o que representava seus locais de origem.
A aprovação no vestibular e a matrícula feita são o início de uma nova etapa no mundo acadêmico e deveriam ser momentos oportunos para estabelecer relações com os estudantes veteranos e entender a estrutura do ensino superior. Mas o que acontece é, em muitos casos, um pesadelo recheado de agressões físicas, verbais e psicológicas contra os novos membros da comunidade acadêmica.
Caso emblemático sobre a falta de limites e de relações de poder deturpadas foi o do calouro de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Edison Tsung Chi Hsueh, que em 1999 foi encontrado morto no fundo da piscina Instituição, após uma recepção de calouros. Forçado a entrar na água, mesmo não sabendo nadar, acabou por falecer e só teve o corpo encontrado na manhã seguinte, no que foi um dos mais chocantes casos recentes de trotes no Brasil.
O fato é que o trote foi naturalizado e se estabeleceu como “ritual de passagem”. Para Eduardo Oliveira, coordenador de assuntos estudantis da Universidade Estadual de Goiás (UEG), é preciso um pouco de cuidado com esse olhar condescendente sobre o trote. “Não se pode simplesmente encarar essa questão como mero marco de uma nova etapa, principalmente quando há violência envolvida”, observa.
Essas situações de violência não podem ser entendidas e justificadas como rito de passagem, sendo necessária uma discussão séria a respeito da questão. É o que também aponta Rezende Bruno Avelar, coordenador de Direitos Humanos e Diversidade da Pró-Reitoria de Graduação (PrG) da UEG.
Ele observa que a prática ganha ares de desforra, ou seja, de vingança. Os alunos veteranos que experimentaram situações adversas, irônicas ou vexatórias, à ocasião de suas entradas na Universidade, escolhem, por sua vez, vingar nos calouros o processo sofrido em seus tempos primeiros na Academia.
“Isso não deixa de ser uma forma de se exercer um poder, ainda que micro, mas que é muito revelador. Há um estranho e falso prazer em rir de quem se considera sujo, feio e passível de humilhação”, assinala.
A Eduardo e Rezende, faz coro o coordenador pedagógico do câmpus Henrique Santillo, em Anápolis, professor Flávio Alves Barbosa. Ele entende que as Instituições de Ensino Superior precisam estabelecer normas que impeçam a realização desse tipo de evento. Entretanto, os três fazem a ressalva de que essa parte legal é apenas um dos aspectos envolvidos nessa questão.
“É preciso trabalhar de forma ampla. Veja bem: só normas não resolvem a questão da violência, pois esta não se encerra apenas com punições. Isso quer dizer que os estudantes não devem cometer violência por medo de serem punidos, mas por entenderem que o respeito pelo outro é necessário”, pondera Eduardo.
Nesse sentido, o coordenador de assuntos estudantis da UEG enxerga como um avanço a reformulação das matrizes curriculares dos cursos da Instituição. De acordo com a nova proposta curricular, há um foco no indivíduo que estimula, além de aspectos próprios de suas formações, o empoderamento individual e a perspectiva cidadã.
Casos ganham visibilidade nas redes sociais
Para o professor Flávio é precipitado, entretanto, assumir um possível aumento nos casos de trotes violentos nos últimos tempos. Para ele, o que mudou foi a dimensão que os casos tomam com o aumento das tecnologias de foto e vídeo.
“Veja bem, antes essas ações ficavam restritas aos locais em que ocorriam. Hoje, com um celular essas imagens ganham o mundo”, observa. Ele, entretanto, pondera que a forma como essas imagens são utilizadas perfazem uma relação paradoxal. Pois, ao mesmo tempo em que denunciam, são também utilizadas para escárnio e perpetuação da violência.
Nas redes sociais são inúmeros os exemplos de mobilização em torno da questão. É o caso da página “Chega de trote ofensivo”, no Facebook. Nela os participantes relatam casos de violências ocorridos em suas cidades ou instituições de ensino superior.
Segundo a descrição da página, os participantes são “contra os abusos cometidos nos trotes das universidades”, apoiando “os estudantes calouros para que eles não tenham seus direitos violados”. A página também estimula a promoção de ações solidárias ao invés de atitudes violentas (sobre como participar dessas campanhas de solidariedade na UEG veja as matérias http://www.ueg.br/noticia/19772 e http://www.ueg.br/noticia/19863).
Espaços similares proliferam em todas as redes sociais. Além desses espaços próprios para a discussão do tema, usuários em geral costumam postar denúncias de casos que lhes chegam. Isso inclui, além da violência física, casos que envolvam violência simbólica.
Para Rezende Bruno, é possível perceber essas manifestações como a reverberação no espaço acadêmico de uma problemática social maior. “A violência que se vê e se experimenta no dia a dia muitas vezes acontece também na universidade. Dentro da sala aula, nos espaços comuns e coletivos dos câmpus”, diz.